quarta-feira, 29 de julho de 2015

souvenirs

é hora de doar tanta roupas em desuso
velhas ou novas
é hora de limpar as gavetas
e suprimir todo papel que é passado apenas
é hora de doar os livros que ficaram imóveis
e não encetam diálogo

hora também de descartar
todo sentimento gris
suprimir esses souvenirs
que se alimentam do pó
e nos laceram como máquinas

tudo que restar deve de caber
essencialmente numa mala

e o mais importante
não estará na bagagem:

o amor que tento aprimorar
todo dia
e os poemas que desprendo
das minhas mãos
e deixo como presente
a quem deseja de alguma forma
guardá-los. 

mesa preferida

depois de um dia cheio
onde todo trabalho ainda é
uma esfera de plúmbea
no pensamento
ele senta à mesa preferida
e escreve

podia estar descansando
dando comida aos pombos
ou assistindo telenovela:
no entanto escreve

sem pretensão de glória
escreve 
porque o som das palavras
o alucina
e o desejo de prescrutar
o inaudito
é mais forte que o cansaço
febril do corpo

muita vez pensa
que isto acontece a sua revelia
este ir-se aos roucos ciprestes
e às águas trêmulas
que deságuam em páginas 
de cópula imagética 
forma sentido
e mitos

de certa forma
parece que há algo ou alguém
que está a escrevê-lo
e o faz
sentado na sua mesa preferida.


Pelotas 4:05 AM

Fria noite invernal
A ossatura quebradiça – um vulto
A oscilar na cerração

Asas decepadas
De anjos curvos  
Cata-ventos amassados
Pés lamacentos
Estilhaços de faróis
Bílis e copos plásticos

O tropeço em cântaros
De destilado na rua
Mel de nicotina na garganta
Voz crespa pragueja
Em pensamento

O abismo é um inchaço no fígado
A lua é idealização
Para outro fim de semana
Com os velhos sapatos marrons

O frio arranhando o branco do olho
O pouco que há do rosto
A jaqueta parece um animal atropelado
Colado no corpo

É confortável perder a fé na beleza
Às 4 horas da manhã
A solidão já não dói
A solidão é nada é um arranhão
Sem sangue

Santos
Finalmente
Os cobertores gastos
O vir do sono
Dormir. 

Luta desarmada

Canto a liberdade das noites inauditas
Quando realmente posso desaguar
De forma autêntica e sem sobressaltos

Canto por me aceitar transitório
E com isso ter mais ímpeto de suster a voz
Enquanto há voz e canto

Canto pelo insulamento e a comunhão
Que tento entrelaçar no meu traçado

Canto a renúncia pacífica
Dos bens mundanos
E a confiança na poesia

Canto a uva antes perecível
Até se tornar vinho e ser envasada
Até estimular minha verve
E fluir na tinta da minha caligrafia

Canto que é mais que prece louvação
É ofício luta desarmada
Sonho
Devaneio
Num mundo embrutecido

Sou eu explodindo na boca das ruas
Desejo-me o porta-voz
Das tardes e das noites

Meu templo imperfeito –
Essas palavras poucas que aprendi
E combino com o melhor de mim
E com o pior do Hades

Um dia serão ouvidas
Por aqueles que estão dormindo
Ou ainda não nasceram.

terça-feira, 28 de julho de 2015

primeiro poema das velhas novidades

Alguns fugiram num foguete
E nos mandam e-mails perguntando
Como vão as coisas por aqui

Nós respondemos:
Ah, nada mudou
A vida continua
Sendo uma bagatela
Mal vivida

Continuamos sofrendo por amor
Comprando a prestação
E gastando o que não temos

Continuamos bebendo
Fumando
Ouvindo
In The Wee Small hours
Do tio Frank no Juke
Até a taberna fechar

(Na última noite
Varreram as cinzas de Murphy
Junto com resto de cerveja &
Cuspe)

Continuamos aqui
Insistindo
Tentando escrever
Um poema que preste
Enquanto Mrs. Angel
É traduzida em 50 países.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Os Insones

O futuro sedutor das revistas científicas
É uma inevitável obsolescência;
O presente automático de ontens exaustos
Foi projetado em produtos nascidos inúteis.

O que se mantém incólume
É a perseverança das nuvens,
A força marítima indócil & o ímpeto
Dos ventos e das chuvas.

O que se preserva é a inquietação
Que não permite descansar os insones. 
Eles - que batem nas pedras do cotidiano
Com força e delicadeza precisa
E engendram a vida Trans-Figurada
Que nos ajuda a respirar neste palco.

domingo, 26 de julho de 2015

Domingos

Parece que sinto
Aqueles domingos
Quando todos ainda
Não eram retratos
E lembranças

Parece que insistem
Aqueles domingos
Quando o tempo em que habitávamos
Era um lugar seguro
E confiável

Parece que soam
Aquelas vozes
Meu pai
Meus avós
E meu tio

Mas eu abro os olhos
Na escuridão e vejo:
Um vazio no corpo do destino
Um clarão de silêncio
Em mim

De olhos abertos
Tento me persuadir
A vida é assim:
Intercalar
O riso e a lágrima
A vida é assim:
Um rio de ausências
Inflexível incansável

Eu tento me persuadir
Preciso continuar
Preciso seguir
Mesmo que eu não saiba
Exatamente para onde.

sábado, 25 de julho de 2015

****

Eu te deixarei meus melhores versos
Pois meu desejo é a dissolução
No ápice das chuvas torrenciais

O amor é brutal – demais para mim
Pra sístole dum coração arcaico
Para a miséria dos meus pulmões

Eu te deixarei meus melhores versos
Pois preciso partir urgente
No aço – espelho das chuvas

Mais do que eu – os meus versos viverão
Hão de ser mais tênues que minha presença
Uma eterna presença silenciada 

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Ausência

Faz tempo
Sinto falta de mim
Sinto saudades de mim
Cá estou - meu corpo
Meus sentidos
Boiando a esmo
Na praxe
De abrir os olhos
Proferir fonemas
Díspares e
Engasgar o grito

Não lembro
Onde quando
Me extraviei
Restou a secura
Essa casca de dor
Esse cadáver
Que carrego

Ora sou um enfeite
Andante
Que toma café
Vai pro trabalho
E depois dorme

E acorda
E toma café
Vai pro trabalho
Depois dorme

Meu casaco
Do dia a dia
Sabe o caminho
Que traço sem querer

Faz tempo
Sinto falta de mim
Sinto saudades de mim.

domingo, 19 de julho de 2015

Entardecer

Não se prendam por minha pessoa
Sigam – amigos – suas aventuras
De mar descobrimentos
Ouro continentes
E ilhas de amores

Sigam em busca da fortuna  
Heroico nome
Num escudo de bronze

Eu estarei bem
Sentado por tardes amenas
Tomando meu chimarrão
E anotando impressões
Do por do sol ou dos desenhos
Herméticos das nuvens

Sem cobrar nada da existência
Além de um lugar tranquilo
Em que eu possa me sentir
Seguro

Não estendo mais meu sonho
A países
Ou brasões

A palavra a tarde
O amargo
Meu refúgio

Teu voo

Depois do último suspiro
Voaste alto, muito alto
Para além da dor

Para além do obstáculo
De um corpo cansado e frágil
                                               E por fim 
                                        - Frio

Foste naquelas asas grandes
Que um anjo mais amigo te ofertou

Tu que sempre sonhaste com o ar rarefeito
Sempre admiraste o voar sereno da águia
E aero-
Planos

Enfim teu voo sóbrio
Sem o cronômetro
Enfim liberto da terra
Das cicatrizes
E do tempo.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Começar

Ainda falta muito
Para as serpentes
Se envolverem no teu corpo

Muito
Para o jaguar sanguíneo
Direcionar teus rifles sem precisão

Muito muito
Para a flor carnívora
Mastigar teus dentes

Falta muito amigo
Para o demônio gastar tuas rótulas
E espinha dorsal

Muito
Para as trepadeiras 
Se enrolarem no teu verso
                                             Mole, viscoso
Nos cueiros da adolescência

Ainda falta
Aprender com as pedras
E com os gritos
De selvagens que nunca ouvistes falar
Assimilar
A aspereza das canas de açúcar

Ainda falta jogar
As podres gramáticas
No olho do cu do deserto

Ainda falta
Tu te tornares
Tímido e simples
Como um analfabeto


E assim começar.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Ainda Virás

Ainda virás
Do olho das enchentes
Trazer o caule rachado de uma promessa

Ainda virás
Com o sorriso trincado
Trazer um hálito de culpa e pele de escusas

Espero que venhas
Para eu poder te olhar
Como alguém que olha
Um sapo morto ressecado
À beira duma cloaca

Ainda - eu sei
Virás trazendo restos de madeira
E fragmentos do azul vazio das tuas veias

Espero que tu venhas
Para que eu possa te ofertar
Minha hostilidade tímida
Meus lábios de lodo

Minha inocência de pedra
Que não entende de pássaros
E cartas de suicídio.