segunda-feira, 31 de março de 2014

Reminiscência #1

Entre o pouco que ficou
E antes que se apague
Remonto a figueira e as tardes

Um menino morto
A brincar
Esquecido no quintal

Arrancando figos verdes
Que sangravam branco
Na hora cinza

Era o prenúncio
O prefácio
Do menino morto
Para o homem a nascer

Céu Suburbano

e no subúrbio de casas pequenas
crianças descalças
gritos histéricos
mulheres paupérrimas
praguejando
ferindo a pureza ideal e
clara do silêncio de sábado

o languescente início da tarde
ouve a educação simiesca de gritos
escândalo

bem ao fundo do desenho baço
desta cena flácida e suburbana
ilógico
Como alguma espécie de mágica
Ou obra de qualquer deidade
soa um piano em chamas:

Chopin no Estudo 10, em Mi maior
sobrevêm à massa amorfa de pobreza
um colorido estranho surge nas casas
um arco-íris invade  portas abertas

e no olhar do homem rude
um homem triste em seu momento de ócio
(enrolando um  cigarro  )
nasce um brilho diverso
de repente ele encontrou no meio de seus  guardados
algo que não queria procurar
e a música adentrou seu corpo lhe violentando
como um anjo estuprador.


quinta-feira, 27 de março de 2014

Canção

           

e no bar, à beira do aguardente
entre vozes várias zumbindo
como enxame de vespas
o bêbedo se aproximou da viola
testou um dó maior
e deu início ao flébil  lamento:

- a água  ardente da fonte
da fonte,  senhor:
nos dá de beber hoje
que temos sede!

Letes abençoado
que entorna ao vão do esquecimento
- ah são olvido -
nossas dores frementes

caudalosamente
maravilhas da água
correnteza próspera 
milagre batismo:
fluxo  refluxo
aguardente.

a dor do operário sem mãos
ninguém sabe;
o pesar do ambulante sem pernas
ninguém sabe;
a mágoa da mulher sem voz
ninguém sabe;

a água  ardente da fonte
da fonte,  senhor:
nos dá de beber hoje!

a vida é precária
meu deus,
nos dá este dom
de esquecer
que temos sede.          

quarta-feira, 26 de março de 2014

O poema nosso de cada dia

Bom que oficialmente
Ser poeta não é ofício
De que se tire sustento

Há raras exceções
Mas poesia não foi comprada
Nem vendida

Há editoras, no entanto
Que obtêm mortos
E os celebram
Sem grande comoção

Grão de exceções
Ainda não é
E nunca foi
Best-seller

Que o dinheiro
Não venha
(e não vem)
Prostituir a musa
E remover as cordas da lira

Que a prosa aguada
Continue a vender
Vender
Igual pornografia
(Isso é tão lindo!)

E a lira permaneça
Sem dar grandes recursos
A quem escreve
Poeta tem sete vidas
E sobrevive

Que continue sendo
Um ato altruísta do
Poeta coa poesia
Mesmo à margem
Da margem

Sem colonizadores
Poesia poema poeta
Na periferia salvos
nos desvãos escuros
Um tesouro
Para poucos.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Inscrição

Antes de dormir
Com os olhos fechados
Penso no livro que ainda não publiquei
Imagino meus poemas finalmente implantados
No papel

Meus poemas
Sem arestas – enfim
E com cheiro de tinta

Idealizo a capa, lombada
E penso no conforto de deixar algo para o mundo
Uma carta fidedigna dos meus olhos de ponte em ruínas
Um relato claro de meus abraços
E adeuses

No fim é o que queremos
- Nós que resolvemos enfrentar a hora de vidro:

Deixar uma inscrição ainda que premida
No grande livro eterno
No mesmo mundo de sempre.

Datilografia

A enchente levou tudo que eu ainda estava pagando:
Smartphone, tablet, notebook, TV
Todos os meus itens hodiernos

Mas não arrastou a máquina de escrever
Que herdei do meu avô materno

Ela continuou parada no meio da lama
Uma Remington anos 40
Com seu peso vetusto
Por algum motivo venceu
A segunda guerra e a enchente

Com a paciência de um relojoeiro
Limpo a estrutura mecânica
Passo óleo com um pincel
Num trabalho claro e dedicado

Fico com a máquina de escrever
E esse sorriso-poema
Que a enchente

Também não levou.

Mundo Novo de Sempre

Compra-se o eletrônico
Propalado em reclames insistentes
Faz mil duzentos e cinquenta coisas
& promete estancar o tédio de viver

Mas o júbilo é tão breve
Dura o trajeto-tempo
Que vai da loja ao lar

Mil duzentos e cinquenta coisas
Mas em casa já não há alegria
Olha-se o produto versátil
Para o principal ele é inútil
Para o principal ele só ocupa espaço
E dá trabalho de ter de recarregar bateria
E aprender suas funções

Falta excitação
Para usar o aparelho que prometia
Vida mais fácil
Por fim tornar-se retraído na estante
Vazio de sentido.

Feito por chineses
Que trabalham doze horas por dia
E sentem fome
E seus pés doem
E seus olhos ficam enfastiados
E necessitam, tão somente
Das suas casa
Comer
Dormir.


Ninguém é feliz...

segunda-feira, 17 de março de 2014

Poema-desculpa em gran finale com direito a coreto desafinado



Eu cantarei o poema-desculpa
Cantarei o poema-me-perdoa
Por ser tão sem expressão
Cantarei o poema-sem-álcool
Cantarei o poema-tímido
O poema-mediano
Cantarei o poema-calado
O eterno poema-sem-assunto
O épico poema-assexuado
Anaforicamente
Pateticamente
A juventude
Da mais escusa torre
As mãos vazias
Rugas, gris 
Pus com sangue da manhã
O poema-rastejante
Pedindo perdão
Por ter nascido

Poema para 28 de Outubro



O cartão amarelo-sujo
Diz que ingressou
No serviço público
Há 30 anos

Hoje a ficha funcional
De José reaparece
Para a última anotação

O ponto final
Da sua trajetória
Discreta
Curvada
Na secretária perto da janela

No cartão roído por traças
Defecado pelas baratas
Está a história de José
Sem grandes incidentes
Ou conquistas

Além da ficha-funcional
Pouca coisa se sabe:
Não teve filhos
Era taciturno
E lamentava
Raras palavras
Para dentro de si

E que lustrava
O olhar com aguardente
- Profilaxia
Pra sua alma diáfana

Nunca o viram sorrir
Talvez não tivesse dentes
Ou era mesmo infeliz

Fora isto,
Sua vida resumida
Na ficha funcional
E mais um pouco de seus dias
Disperso nos papeis
Que passaram por sua mesa
E ganharam a caligrafia trêmula
De sua assinatura

Finalmente
O cartão amarelo-sujo
Do funcionário público
Volta
Definitivamente para o arquivo
Ao convívio com os ratos
Não menos anônimos
Que José.

Desaprendizagem: um exercício



Depois de certa idade
O aprendizado da vida
Consiste em desaprender

É importante desaprender o amor
Desidealizá-lo
Até se tornar uma tarde de domingo
Apenas

Importante desaprender a pressa:
A vida tem seu ritmo
E ele é lento
Rápidos são os versos doentes
E as meretrizes. 

Desaprender os livros lidos
Os personagens
E seus autores
Que, apesar de respeitáveis,
Sentiam-se ínfimos
Em certas auroras
Como nós…

Desaprender certos enfeites
Que mais pesam do que ajudam
Exemplo: linguajar afetado
Supervalorização do eu
E da coleção de latas de cerveja

É importante ressaltar
Que a artificialidade do sorriso
É muito desimportante
Bom é não treinar o sorriso
Deixar que ele floresça
Livremente
Igual às macegas

É fundamental desaprender
Certas lutas e alguns desassossegos:
Nem a revolução nem a tecnologia
Vão inventar a máquina de felicidades

Não dá pra lutar contra o dinheiro
Mas é preciso ganhar o suficiente
Para não precisar pensar nele

Inevitável desaprender o que os pais nos ensinaram
E, em troca, ensinar-lhes
Tudo que desaprendemos
Até que se sintam
Menos graves
E mais vulneráveis
Ao entardecer

Faz-se necessário
Saber
Que um copo d’água
Tem mais utilidade que um computador

E que num computador
No entanto
É possível
Escrever poemas
E outras coisas sem valor mercadológico

É forçoso desaprender os caminhos
E perder-se um pouco
Vezenquando
Corre-se o risco de encontrar uma moeda
Um arco-íris neste caminho diverso

(No desaprendizado descobrimos que as coisas
Colhidas em laborioso estudo
Ou a esmo
Só serão importantes
Quando vivenciadas, de fato
O lugar mais comum é obscuro
Sem a experiência
Como dizer da maçã
Sem prová-la?)

Chega um tempo em que os verdadeiros sábios
Que podem nos ensinar qualquer coisa útil
São as crianças





Poema para um dia nublado



Filhos de pais medrosos
Que, num sexo furtivo
Vestido de pudor,
Nos trouxeram a este mundo
Insano
Cheio de paranoia.

E aos poucos
Foram jogando todo medo
Por cima de nós
Até sentirmos
que somos
Anjos sem asas
Vultos
Sem forma.

E a hora não tardou:
Temos que enfrentar
A vida
Lutar
Pelo pão seco
E o amor escasso


Há templos de cimento e ferro
Imagens
Versículos
Mas deus é mudo
Um placebo
Pintado com barbas brancas.

Sim, estamos sozinhos
Os pais estão velhos
E ainda possuem
Faces medrosas
Não conseguem dizer nada
A não ser:
Cuidado
A vida é perigosa!

Para eles ainda somos
crianças desamparadas
No fim ainda somos
crianças
Mas
Carregando a mesma cara
As mesmas mágoas
e medos
Dos nossos progenitores

Estamos apavorados
Tão medrosos
Já usamos bebida
Drogas
Nada adiantou
Já tentamos o Budismo
Prozac
Enriquecemos a indústria farmacêutica

Estamos apavorados
Tão medrosos
que o vale da morte
parece a única saída
O único lugar
Seguro.





Menino da Cidade



Sempre fui menino da cidade
por isso aprendi a só olhar para dentro de mim
e o meu dentro era cheio de flores de plástico
blecautes pátio de cimento
solidão em vasilhame enferrujado

Fui amadurecendo obliquamente
como um abacaxi verde
Num prato refratário

Depois descobri os livros
mas era o meu dentro
que eu encontrava
em Raskolnikov
Caulfield
Werther
Fausto

Hoje
no meio do caminho
já consigo ver pela frincha da noite
algo além de mim

Não o miraculoso Aleph
mas por entre os grãos d'água
um caracol dançando na chuva.

Poema da Infância




Era 1981 e a segunda guerra já havia acabado
No entanto o Spitifire
Famoso caça britânico
Era objeto de desavença

De um lado um pai que não queria ser pai
Do outro um menino de três anos de idade que
                                                     queria brincar
Voar no aviãozinho

Já o pai queria que ele ficasse como enfeite
Na parede

A criança chorou porque o avião não podia sair
                                                                     dali
O choro foi intenso e incomodou o pai que não
                                                     queria ser pai
A mãe tentava apaziguar a contenda
Distrair seu filho com outros objetos de menor
                                                                  valor
Mas o menino insistia
Queria voar no Spitfire
E continuava a chorar...

E, numa atitude descontrolada, o pai
Quebrou o caça britânico em mil pedaços

E assim acabou a guerra.


 

Crime

Sei que o maior crime neste país
é celebrar a tristeza
Num poema

Há um manual de convenções para sorrisos
Um livro de respostas evasivas
Para questões de ordem existencial

Está previsto na lei
Que abole todo e qualquer tipo de tristeza
A carnavalização

O indivíduo que for pego
triste
lucubrando
Terá que passar um ano
Pulando num carnaval
Exclusivo para nefelibatas
Melancólicos
Que ferem a alegria do país

E não adianta chamar por Deus
Deus, que é brasileiro
Está sempre ocupado
Numa roda de samba.