sábado, 28 de junho de 2014

Oito e cinco da noite


Oito e cinco da noite
- Continuo esperando o ônibus -
Oito e dez
- Acendo outro cigarro -

Se não houvesse tanta espera na vida
juro que parava com os cigarros

Oito e meia
E um desânimo profundo
Toma conta do meu ser:

Desisto de esperar
Aceito ficar eternamente
No ponto de ônibus

Deitarei no chão úmido
Dias e noites virão
Restarei – sem perspectiva
Até a desintegração total.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

4 improvisos

I
a última inocência corrompida
e inutilizada
e o grito dos cantos
(ora)
uma harmônica sem tom

com o cordão da calçada
amarro meu desejo
e minhas relíquias
para lançá-las no pretérito

não sou mais
que osso numa planície de vento

venha
quando vier
a ordem de renascer

II
sim, toda bandeira é flácida
ah
tanto Ícaro audaz
morto.

III
tarde consegui tanger o áspero folguedo da noite
tarde limpei meus olhos de salsugem
e (tarde) modifiquei a alegria dos ponteiros

tarde avancei a voz sem pétalas rumo a uma clave de concreto
tarde convenci meus degredos a se tornarem olvido
e (tarde) decifrei o cosmo da solidão

e vi, nu, o verbo
e a raiz ainda era um corpo de lama
e a morte, semente deste sol

nunca é tarde para ganhar a vista
e ver simples
mesmo na cegueira mais sombria 
um ancoradouro sólido

quem sabe cedo decifrei
uma senda
sem dédalo

ou uma verdade
mesmo provisória
para abafar o coração
cortado com estilete

IV
labirinto?
é antes o rumor das flores se abrindo
rumor das mãos austrais edificando a manhã
para os pássaros repousarem

é antes o tempo
tornado pedra
propício
para a reinvenção
dos sentidos

Impromptu Acerca da Tarde Opaca

suspendam caravelas e seus descobrimentos
suspendam violinistas e suas partituras
foi detectada uma pobreza mórbida no quintal
e repentinamente a tarde se vestiu de gris

a secura do pão corta a garganta
o café tem o gosto de remédios da infância
solda queimada
o café não reabilita o prisioneiro da tarde

assim o ator improvisado
esquece a fala perde os sentidos
por medo da bomba de informação
dispersando os últimos farelos
de seu talento

bardos esfarrapados esgotaram o último barril de vinho
e não atinam escrever qualquer verso na superfície de lata
com pregos enferrujados
os bardos são apenas cabelos gordurosos dentes manchados de roxo
pingos de urina nas calças
e olhos avermelhados de culpa

um pai sem fonemas de sonho deteriorado
balbucia o  corpo de açúcar sobre a mesa
e a mãe de olhos imantados para o sul
ri seu riso opaco com dentes de analgésico

(numa garagem o verdugo espanca moedas com martelo
para que elas percam o brilho e o valor
há de sempre se perder o valor e virar uma tarde chumbo)

tudo suspenso
pois não há dignidade na parede crua
nos dedos de nicotina
ou na tampa partida do sanitário
tudo suspenso no espaço e na hora grave
tendo em vista que as articulações se inflamam
para o recíproco abraço
e a roupa de cama é o cardume festivo
à beira do cadáver novo

tudo suspenso
até que a noite se debruce sobre toda a miséria
e se cale a dor do último esqueleto

com a noite venha
um licor mais lustroso
sangue de deus-filho para
redimir o drama desta tarde.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Juventude

no bolso o pequeno livro que meu avô segurava
antes de morrer:

prenúncio
de um caminho áspero
na pálpebra do tempo

a sensação de que meus olhos
estavam doentes
ou todos adormeciam
deveras

algo podre na beleza
poses engessadas
e não ser domesticado
o crime reincidente

nada se revelava claro
mas
as hienas estavam sempre certas
e proferiam seu estribilho:
com certeza com certeza com certeza...

exumando o morto ele continuará sorrindo
mas eu jamais quis amarelar o sorriso alheio
eu não quis ser o que veste o colete de chumbo
e põe rugas de preocupação nos pombos

exumando o morto ele não fará qualquer gesto de pudor
seu sorriso descarnado estará lá
o destino é sorrir
com certeza com certeza com certeza...

seria mais simples
contendas corporais
e exaurir sangue 
ou ler coluna esportiva

anos o recesso
resguardando o mito
vivo em meu coração
apenas não fechar os olhos e ver
o inferno idealizado por Dante
sempre  cravado na alma
círculos gelo fogo
monstros & feras
& mares

no meio do caminho
sozinho
uma bolsa
com meus próprios ossos
o pequeno livro do meu avô...
a morte nasceu em mim.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Esperando amanhecer...

há dois dias
o relógio marca duas da madrugada
há dois dias não amanhece

vida estática em meu quarto
sem a perspectiva de um grão de luz
nas sujas fenestras

prisioneiro do tempo
tento em vão ordenar os ponteiros
- Ah, deve existir um feitiço ruim
na hora perdurada!

com olhos lacrimosos e vermelhos
quase cegos de tanto ler
penso que seria conveniente dormir
- quem sabe dormindo
o tempo se restabeleça 
e a paz...

mas não posso não consigo
e são duas da madrugada
indefinidamente
duas da madrugada

até que o corpo caia exausto
e a vida prossiga.

Espera

O pão é para manter
O corpo sólido
E ativa
A violácea espera

Pão branco
Pasmo sob o encanto
Do amanhecer

A mão imprecisa
Reparte a vida

De trigo e sonho.

domingo, 1 de junho de 2014

morte pela água



A current under sea
Picked his bones in whispers.
(T.S. Eliot)


bebia com um amigo
duas cervejas ou mais
num melancólico happy hour

entre nós
uma conversa pausada
e sem pressa

a cada silêncio do nosso diálogo
chegavam fragmentos verbais
de todos que também ali estavam:
futebol, previsão meteorológica,
falta de dinheiro, política

gentes de diversas as idades
falavam energicamente
e uma televisão brotava da parede
interagindo com o palavrório

meu amigo e eu
voltávamos a falar
parcimoniosamente
até a próxima brecha
na qual a multidão vinha nos compartilhar
seus dilemas alegrias e problemas

e numa dessas lacunas do nosso diálogo
ouvi, crescendo o som marítimo
em ondas ligeiras

estrondo cólera de um ignoto mar
cada vez mais forte e ensurdecedor
e as vozes das pessoas que ali estavam
foram silenciadas pelo turbilhão d’água

todos estavam sendo levados pela inundação
homens mulheres crianças:
foram suplantados daquele momento
daquele tempo

quando fui falar com meu amigo
ele não estava mais ali
provavelmente havia sido levado também
pelas águas brutais

fiquei sozinho
bebendo
talvez ele nem estivesse ali
em momento algum
meu amigo...

por graça divina as ondas
não haviam arrastado o barman
que me serviu mais uma cerveja
e eu fiquei ali conversando comigo
esperando que as ondas viessem me buscar
finalmente