domingo, 1 de junho de 2014

morte pela água



A current under sea
Picked his bones in whispers.
(T.S. Eliot)


bebia com um amigo
duas cervejas ou mais
num melancólico happy hour

entre nós
uma conversa pausada
e sem pressa

a cada silêncio do nosso diálogo
chegavam fragmentos verbais
de todos que também ali estavam:
futebol, previsão meteorológica,
falta de dinheiro, política

gentes de diversas as idades
falavam energicamente
e uma televisão brotava da parede
interagindo com o palavrório

meu amigo e eu
voltávamos a falar
parcimoniosamente
até a próxima brecha
na qual a multidão vinha nos compartilhar
seus dilemas alegrias e problemas

e numa dessas lacunas do nosso diálogo
ouvi, crescendo o som marítimo
em ondas ligeiras

estrondo cólera de um ignoto mar
cada vez mais forte e ensurdecedor
e as vozes das pessoas que ali estavam
foram silenciadas pelo turbilhão d’água

todos estavam sendo levados pela inundação
homens mulheres crianças:
foram suplantados daquele momento
daquele tempo

quando fui falar com meu amigo
ele não estava mais ali
provavelmente havia sido levado também
pelas águas brutais

fiquei sozinho
bebendo
talvez ele nem estivesse ali
em momento algum
meu amigo...

por graça divina as ondas
não haviam arrastado o barman
que me serviu mais uma cerveja
e eu fiquei ali conversando comigo
esperando que as ondas viessem me buscar
finalmente

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