A ave era
antropomorfa como um anjo
E solitária
como qualquer poeta.
(Jorge de
Lima)
chegou à pequena
cidade
quando ainda era
tempo nublado cor de chumbo
vestia uma roupa que
não se sabia marrom
ou simplesmente
encardida
o forasteiro tinha a
face deformada
órbitas
desconjuntadas
e seus olhos eram
caroços tímidos de azeitona
o rosto torto
queixo brusco
e sua boca um
rascunho de lamento
vagou dois dias
buscando emprego
os homens lhe olhavam
de soslaio
não o queriam nem
para carregar dejetos dos porcos
as crianças o temiam
choravam ao encará-lo
os adolescentes
escarneciam de sua aparência
no entanto ele
mantinha o mesmo cenho rude
(provavelmente não
conseguia
dar expressão à face)
dormiu a noite na
praça
na manhã seguinte um
pároco
deu-lhe comida,
ofertou banho e roupas limpas
o forasteiro nada
falava, mas respondeu
com dois olhos
úmidos...
voltou para a
pracinha e de suas mãos nasceu
uma flauta
transversal em madeira
colocou o bocal em
seus lábios de dor
e todos estranharam
aquela melodia
bonita e melancólica
que ganhava o ar
e invadia lares
espantaram-se os
pedestres
ao ver que era o
mendigo disforme
quem exalava através
da flauta
aqueles doces
lamentos sem nenhuma partitura
a cada momento uma
canção mais linda que a outra
“como uma criatura
tão feia
pode desenhar tão
lindamente
com sons”
disse o vendedor ambulante
“deve ser coisa do
diabo”
disse o oleiro
uma senhorinha
encurvada disse que
era coisa de deus...
ao fim da tarde parou
de tocar
mas na manhã seguinte
as melodias etéreas ressurgiram
pessoas lhe deixavam
moedas
e presentes
ele agradecia
baixando a cabeça respeitoso
as crianças que
outrora lhe temiam
observavam admiradas
e queriam também ter
uma flauta
e aprender a fazer
poemas doridos com notas musicais
por seis dias ele
adornou a pequena cidade com sua música
o sétimo dia
amanheceu sem a sua flauta
mas na pequena cidade
já não era tempo
nublado
e todos lembram até
hoje
do forasteiro
disforme
sua flauta
e as melodias lindas
e misteriosas
permaneceram até hoje
em seus corações.