sábado, 31 de maio de 2014

Epigrama n.º 3

Verdades desveladas em sonho
Muito antes dos sentidos acordados
Alcançá-las:

Há de se ter coragem de enfrentar
A eternidade?

Ou descrer da grandiosa manufatura
Em cada pétala de uma rosa?

Há de se duvidar da sabedoria
Que move os astros como engrenagens
Na pontual relojoaria do infinito?

Montanha

Meu corpo ainda não abriga a ameaça do câncer
Meu corpo continua com todos os membros em perfeito estado

Olhos plenos para o mistério
Corpo predisposto para o gozo

No entanto ela - maldita
A culpa - montanha imensurável
Que inadvertidamente
Tento arrastar com cordas
Presas nas mãos
Mãos
Que não conseguem colher horizontes

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Inventário

Já nasce em nosso sangue o gérmen
Da luta: vida x morte & glória
Os dilemas de troianos e aqueus.
Heitor e Aquiles
Falam versos em nosso âmago.
Devedores até o duodeno
A quem quer que seja
A toda tradição
Que resume Homero.

Com vergonha de sentir
Ele criou a máscara
E sentiu tudo de todas as maneiras
Fragmentado exilado no drama luso
Mas acima, o gênio...
Álvaro ou Fernando?
Sentado ao lado de Camões.

É como se abrisse uma fresta
Pela qual se vê o mundo
Sem começo ou fim
Uma biblioteca renovada e ancestral:
E ficamos suspensos no tempo
Quando abrimos um livro de Borges.

Com os versos cheios de lacraus
E imagens inesperadas
Arrancadas com força
Sangue e prata e meninos tristes
Brilho sem termo – Andaluz!
E no inferno ardem
Os algozes
De Federico Garcia Lorca.

Inventor menino
Deu nova cor às vogais
E ímpeto viril à poesia
Rebelde impuro
Vida em alta voltagem
Morreu virgem de sentir a glória
Mas hoje é uma constelação
Que rege o nome Rimbaud.

Outro, não tão menino
Desmanchou a linguagem
como a criança curiosa
Que desmonta um brinquedo
E refez tudo a sua maneira
Hoje todos descobrem
Estupefatos:
A magia de Manoel de Barros.

Bêbado, disse palavras obscenas à musa
Bagunçou a lírica e garatujou em verso
O que era prosa
Mas manteve intacta
A inquietude
O sobressalto
De um quarto pobre
Rico de dilemas e dor
Não se subestima um louco
Corajoso como poucos:
Charles Bukowski.

E meu olhar tímido
Contempla a todos eles
Cada qual com sua nobreza
E eu espero que uma centelha
De cada
Mesmo frágil
Brilhe nos meus versos

Eternamente incipientes.

Herança

Olho para os meus livros
E conjeturo que não são meus
Apenas estarão comigo
Na intermitência de existir

Livros que viverão
Além e aquém de mim

A menina hoje aprende a ler
Amanhã terá a companhia
De meus consortes

Não fiz fortuna
Numa vida já pela metade

Mas espero que nos livros
Ela descubra a riqueza secreta

Maior que qualquer espólio.

Poema

Duas datas inevitáveis:
E entre elas
A folha pálida
Para registrarmos alguns feitos
E- se possível -
Deixarmos nosso nome
Além da pedra derradeira

Aqueles que inventam
Uma vida para depois
Perdem a força
E o impulso de fazer luz
Sob cada instante

Se a vida possui encanto
É pela investida da morte
Que nos faz
na árvore da sabedoria
Buscar
Um pomo
Um poema
Quase novo

Nos faz
Mudar um pouco
O mundo
Com pequenos gestos
Mesmo que
- Quase certo -
Condenados
Ao olvido.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Sem Título

Confiscaram os milagres
A arca de esplendores

Em cofres de aço
Perecem as rosas

A sensação de eternidade:
Devolvida aos vendilhões

Asas partidas de anjos
Em vidros de álcool etílico

Perfurada a infância dos dias
Com vermelhas baionetas

E mesmo assim
cinzelar um sorriso
Na hora do cerco:

 - Nem todos os sortilégios

Foram silenciados - 

O outro de sempre



“Bioy Casares lembrou então que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens”
Jorge Luis Borges


O espelho é abominável
Me multiplica para me espreitar

Outrora tentei partir a imagem
Era vidro e aço apenas

Ambicionei matá-lo
De fome e sede
Ele se expandiu

Eu que independe
Do gesto
E do corpo

O espelho é o juiz:
Me julga  me dilui  
E me condena

Se sobrepõe
Ao ser inerme
Sem imagem

É ele sempre, no fim
A pôr
Um ponto final
Em mim.


o forasteiro


A ave era antropomorfa como um anjo
E solitária como qualquer poeta.
(Jorge de Lima)
chegou à pequena cidade
quando ainda era tempo nublado cor de chumbo
vestia uma roupa que não se sabia marrom
ou simplesmente encardida

o forasteiro tinha a face deformada
órbitas desconjuntadas
e seus olhos eram caroços tímidos de azeitona
o rosto torto
queixo brusco
e sua boca um rascunho de lamento

vagou dois dias buscando emprego
os homens lhe olhavam de soslaio
não o queriam nem para carregar dejetos dos porcos

as crianças o temiam
choravam ao encará-lo
os adolescentes escarneciam de sua aparência
no entanto ele mantinha o mesmo cenho rude
(provavelmente não conseguia
dar expressão à face)

dormiu a noite na praça
na manhã seguinte um pároco
deu-lhe comida, ofertou banho e roupas limpas

o forasteiro nada falava, mas respondeu
com dois olhos úmidos...

voltou para a pracinha e de suas mãos nasceu
uma flauta transversal em madeira
colocou o bocal em seus lábios de dor

e todos estranharam aquela melodia
bonita e melancólica que ganhava o ar
e invadia lares

espantaram-se os pedestres
ao ver que era o mendigo disforme
quem exalava através da flauta
aqueles doces lamentos sem nenhuma partitura

a cada momento uma canção mais linda que a outra

“como uma criatura tão feia
pode desenhar tão lindamente
com sons”
disse o vendedor  ambulante

“deve ser coisa do diabo”
disse o oleiro

uma senhorinha encurvada disse que
era coisa de deus...

ao fim da tarde parou de tocar

mas na manhã seguinte as melodias etéreas ressurgiram
pessoas lhe deixavam moedas
e presentes
ele agradecia baixando a cabeça respeitoso

as crianças que outrora lhe temiam
observavam admiradas
e queriam também ter uma flauta
e aprender a fazer poemas doridos com notas musicais

por seis dias ele adornou a pequena cidade com sua música

o sétimo dia amanheceu sem a sua flauta

mas na pequena cidade
já não era tempo nublado
e todos lembram até hoje
do forasteiro disforme
sua flauta

e as melodias lindas e misteriosas

permaneceram até hoje em seus corações.