sábado, 23 de agosto de 2014

Barcos na tempestade




We are the hollow men
We are the stuffed men
T S ELIOT
os livros lidos não pesam
não fazem volume
o que ingerimos
não faz diferença

qualquer vento nos leva
estamos mortos
carregando nossos ossos
em uma maleta simétrica
cotidianamente
seguindo e ouvindo o caos
como se fosse o cantar de anjos
sobre estátuas de cobre
estamos mortos
mas vivos o suficiente
para ligarmos a tv
recolhermos a voz
e, assim, desfazer, o gesto

na verdade precisamos
de um pouco de álcool
para encher nosso estômago
e esquecer o que não lembramos
ou não nos foi ensinado
esquecer
o que não tivemos força de espírito para buscar
precisamos de álcool
ou qualquer outra substância
que nos impeça procurar por um sentido oculto
no viés da madrugada tóxica na qual se ouve o caminhar de ratos
nas folhas secas do tempo
na qual se ouve
um rio sem fôlego
de todos nós
por todos nós
gemendo

sem coragem para tirar os olhos da superfície
apanhadores sucata tecnológica
freqüentadores da casa de leucotomia
na viela sem luz no beco sem som
abrigados na carcaça de um relógio

alguns, mais soturnos
ouvem sempre
um estribilho já sem força semântica:
“se continuares assim não vais longe”

mas ir longe deve ser apenas
uma das tantas convenções
que nos fazem embrutecidos
ir longe quer dizer
uma forma diferente de de desperdiçar a vida...

ela disse que que eu não poderia fumar no local
tudo bem, mas eu torno a perguntar onde fica o “longe”
ela sorriu de forma cinzenta
e me prescreveu algumas drogas controladas
no fundo ela não sabia onde fica o “longe”...
as portas permanecem fechadas
para o renascer de qualquer mito

somos a geração pragmática
a geração estática
sem mal darmos conta que estamos
com a alma fendida
qual a direção do ir longe?
Ir longe é enfeitar a casa para uma festa
que aconteceu ontem?

corremos atrás de dinheiro
só falamos em dinheiro
até em preces pedimos dinheiro
vamos para um templo resolver nossos problemas financeiros
lemos o bhagavad-gita a procura de dicas
para sermos prósperos
e adquirir um dente de ouro-última moda da semana
entramos com ações judiciais
contra o vendedor de algodão doce, o pipoqueiro
o leiteiro

assim como
ofertavam aos autóctones
espelhos a preço de escravidão
como última tecnologia
da europa

ofertam-nos
tudo que não precisamos:
olhos mágicos perecíveis
penicos eletrônicos
tevês ergométricas
aparelhos de não ouvir
cadeiras multimídia de não descansar
óculos 3D para ocultar as árvores
limpadores de cocô de pombo wi-fi

olhamos maravilhados
como os primeiros índios
olhavam para os espelhos
vendo suas próprias caras
na lâmina tecnológica

compramos
sim compramos tudo
por que não?
temos cartão
e o milagre da economia
apple em 10 vezes

compramos
para encher no nossos baús
e esquecer o que não lembramos
ou não nos foi ensinado
esquecer
o que não tivemos força de espírito para buscar
só não conseguimos comprar
o mês presente
conjugar o amor

somos órfãos
de algo que nos contemple
verdadeiramente
uma verdade espiritual
que nos dê a chance de nascer

Espero que nossos olhos cansem
Espero que a escuridão mais densa que a noite
chegue e leve nosso aspecto
de desespero
o fogo purifique a pele
e consuma as escaras do espírito

estamos tão opacos
com aparência de espantalhos
mas usamos algumas fragrâncias
e colocamos panos caros
por cima das feridas
por cima dos braços
de palha
do tórax
oco

Espero que nossos membros se abram finalmente
Espero que a escuridão mais densa que a noite
chegue e leve nosso aspecto
de barcos na tempestade
o verbo purifique a pele
e consuma todo o desnecessário
para ficarmos a sós contemplando
a dialética do instante
sem medo de que o instante
é tudo o que temos

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