quarta-feira, 9 de julho de 2014

eu sonhei um pouco mais


eu sonhei um pouco mais para isso tudo,
para minha vida, para nós.

“é bom que tenhas parado de sonhar, teu café esfria
já são 7 horas”

porque dois pães se não tenho fome?
há quem tenha fome e sede
olho culpado para os pães
a essa hora sinto náusea

onde coloquei minhas chaves?
os dias burocraticamente iguais...
e se não forem iguais, são piores
pois ainda com a mesmice
é bom, ao menos, estar saudável
os fins de semana iguais, também burocráticos
a vazão burocrática...
talvez a cópula dos peixes seja mais pessoal
é bom, ao menos, estar saudável

(pensar fazendo a barba:
nos besouros mecânicos – nas molas dos relógios
nas bactérias da esponja velha na ferrugem no barbeador
no coador de café nas tartarugas que vivem cem anos
porque não fumam no cara que amputou a perna
por causa da diabetes)

“7 horas e vais perder novamente o ônibus
7 horas e vais perder
7 horas
definitivamente vais perder...
perder, perder, perder”

talvez seja bom perder o ônibus, a hora, o emprego
perder a casa, os cabelos, os dentes postiços, o despertador
o casamento, a máquina de lavar, a bicicleta ergométrica
o velocípede, a torneira rangente, a pastilha de menta
o telefone, o trevo de quatro folhas

“deixa de ser patético, homem
faz teu trabalho humildemente
não reclama, aceita
as ruas estão apinhadas de miseráveis
eles e eles também não são livres
a liberdade acaba dentro do útero
a loba comeu teus neurônios
estás apenas ossos
ossos patéticos”

ontem alguém  disse que já pensou
em tomar 30 comprimidos para dormir
e sorriu
eu disse que também tinha pensado
em fazer o mesmo
nós dois rimos como se estivéssemos
falando de coisas triviais

“à noite vamos no shopping”

sim vamos no shopping, que boa notícia
vamos no shopping
é uma maravilha ir no shopping
eu fico de pau duro só de pensar em ir no shopping
que vida bem aproveitada ir no shopping

sim, vamos...

muitos anos e esse portão faz exatamente o mesmo barulho
quando saio
as coisas todas são previsíveis
mas é bom, ao menos, estar saudável
eu sonhei um pouco mais para isso tudo,
para minha vida, para nós.


4 comentários:

  1. E dói, dói lá no fundo do peito. Como todo bom poema. :)

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  2. Obrigado pela leitura, querida. A poética não mudou. Continuo árido... Beijos!

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  3. Houve dia ou fase da minha vida em que o café da manhã, o banho ou o incenso indiano era o único momento decente da jornada. Houve tempo em que nem isso, virando um redemoinho. Continuo acreditando no café, mas não tenho sentido o aroma dele enquanto passa no filtro. É uma nova fase, porém são dias de jornada menos indecente. Na vida de alguns, as coisas vão se encaixando e desencaixando feito frutos na charrete em declive esburacado. Ótimo poder ler tuas reflexões. Belo poema.

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  4. Obrigado pela leitura, Michele. Gostei bastante do teu comentário. A vida e os poemas são sempre uma busca por sentido. De vez em quando nos deparamos com o VAZIO. Ultimamente ando um pouco mais perto do sentido. Me aproximo e me afasto... Mas o poema é a denúnica de um mundo flácido e precário. E há um eu lírico. Espero que mais pessoas pensem e saiam do transe consumista/hedonista/narcisista: não somos melancólicos, apenas mantemos os olhos abertos para a terra gasta e conseguimos ver as coisas, tais como são... Talvez o sentido é procurar sentido: ele pode estar numa xícara de café, num livro de páginas amareladas, na amizade verdadeira, na conquista de um amor plácido/sem sobressaltos. Em tudo isso, ou no prazer doloroso de continuar tentando aperfeiçoar a arte (mesmo num lugar árido, quase sem ouvidos para ela).

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